domingo, 20 de agosto de 2017

Caldas da Rainha — As Revelações De Um Eremita-Urbano

Para tomar conhecimento da sabedoria, da dor, da loucura, da tristeza caminhei em silêncio entre as multidões que se juntavam
cedi o meu coração aos seus espíritos e tudo isto são Obras da sua autoria no expoente máximo das suas criações

Tive amigos que foram multados por não deixarem circular os sentimentos e agora caminham a pé em busca de um horizonte onde possam mergulhar pobres e românticos entre as dívidas e o sofrimento que saldarão um novo amanhecer,

nesse horizonte sonhavam com a América com a África mas o dinheiro que lhes sobrava só os permitia chegar a Lisboa onde ficavam noites com o sono colado às pálpebras embalados por drogas e drum n’ base e a travessia do Atlântico ficava para outro dia em que não estivessem tão cansados,

eles acreditavam serem seres solares e passavam horas ao sol sem comer, sem dormir, imitando as flores que cresciam nos seus cabelos e ao longo dos seus corpos, golpeados pelo sol caíam dormentes no abismo da noite mas o orvalho que levantava fazia-os recuperar para mais aventuras,

todas as noites partiam na neblina ventosa e pela manhã arrastavam-se de olhos cavos pelo Campus 3, em roupas largas privados de sono, mas proféticos e cheios de sabedoria

e de tanto falarem pelo dia fora, na noite que se aproximava mergulhavam os seus lábios secos em álcool e de seguida cuspiam aos céus e as suas histórias formavam grandes labaredas que deixariam a madrugada iluminada para quem a quisesse ver

outros de olhos fechados  assistiam às projecções mentais dos seus filmes porque o cinema de hollywood era caro e demasiado fraco culminando na perseguição pelos espectros dos actores famosos durante as suas alucinações,

também de olhos cerrados ejaculavam às portas do sonho julgando terem alcançando a eternidade e extasiados de prazer pediam louvores às alturas para lá ficarem como anjos em Part-Time mas só acordavam tarde para o jantar requentado à luz do microondas em quartos arrendados,

que atormentados de lucidez questionavam o sentido da vida e quem era o mais Sísifo de todos para carregar às costas o banco de jardim acabado de roubar para contemplar a Lua e as suas próprias existências,

desistiam da ideia e sentavam-se nos parapeitos das janelas a visionar o seu desaparecimento na engrenagem numérica e mecânica da Industrialização,

revoltados retiravam-se para a Lagoa de Óbidos onde viviam selvagens e livres à procura de Buda depois acordavam melancólicos ao relento nas varandas da Residência com Osho à cabeça e telefonemas de amores platónicos por atender,

nos seus ouvidos retinia a impossibilidade desses amores e sofriam em silêncio as suas solidões com os seus corações retalhados,

saíam à rua e dirigiam carrinhos de compras pelas lojas, pelos parques de estacionamento, pelas avenidas, como kamikazes contra os letreiros digitais da bolsa Capitalista,

sob o holofote bélico do exército declamavam poesia e discursos insensatos para a revolução socialista a meio-da-noite e quando o clarão da beatitude se apagou sentiram-se sozinhos no mundo,

davam aos calcanhares até à Foz do Arelho e criavam guiões para serem compreendidos mas o mar devolvia-os todos ensopados e cheios de bolhas nos pés à porta do Esquecimento,

apercebendo-se da sua insignificância fechavam-se, no guarda-fatos, a recitar Álvaro de Campos Sartre Camus e a magicar o regresso do Dadaísmo ao programa de ensino obrigatório com um manifesto já extinto na manhã seguinte por ter sido escrito ao longo de um braço,

deixavam-se ficar deitados nas suas camas a respirar o ócio dos seus quartos, com acordes de Beethoven, encontrando dentro de si um vazio que não conseguiam preencher,

nas paredes brancas dos seus corredores mentais qualquer objecto exposto era uma revelação do Além,

tinham constantes Déjà Vus de cervejas pagas depois de inalarem fumos Orientais forjados no Habibi

e em galerias sórdidas mostravam os seus órgãos genitais acreditando serem Adão e Eva com o tempo a tik-takear-lhes sobre a sua cabeça para a performance do século senão acabavam banidos do Paraíso,

gritavam de prazer baixinho com medo que Deus ouvisse os seus pecados e os levasse para o Inferno onde os meus manuscritos ardem a grelhar uma costeleta de porco evangélica intocável e impura —

por lá ficaram, a salvo do Inferno, e o seu regresso nunca mais principiou e agora caminham como fantasmas a meu lado nos dias que me sobram por vir —

há-de chegar o momento em que as suas loucuras serão o último resquício de humanidade nesta cidade de alma morta e os seus corpos atravessados pelo Travessão do tempo, como por um raio, iluminarão o Oblívio com as suas tragédias radiantes ardentes e penetrantes até ao fim dos dias.

Cristiano Jesus

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